sábado, 30 de agosto de 2014

Não Vão Ter Meninos Bernardos

(Texto escrito em 18/04/2014, e publicado pelo Luís Nassif. Mediante a divulgação na mídia dos vídeos sobre o caso, resolvi republicá-lo, em homenagem ao Bernardo e às muitas crianças que passam horrores em seu lares. Não podemos esquecer, nem devemos cultivar a inércia)
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Daqui a dois meses teremos uma batalha sem precedentes em nosso país. De um lado, jogadores e torcedores engajados na conquista do sexto troféu de campeões mundiais, do outro, cidadãos críticos engajados a boicotar um dos maiores eventos esportivos do mundo, demonstrando a indignação e o compromisso com os rumos de uma sociedade que despeja dinheiro no subterfúgio lúdico.
Dizer-se indignado e consciente da situação do país virou modinha desde as manifestações de Junho do ano passado. O #nãovaitercopa é fruto dessa moda. Seria positivo esse movimento caso não refletisse a hipocrisia dos politizados. Bilhões já foram gastos com campeonatos de futebol estaduais, nacionais e continentais. Outros bilhões com carnavais e outros eventos esportivos como a Fórmula 1. Para não dizer de outros bilhões para a cultura em forma de alienação. Mas tudo é circo e os palhaços de forma alegórica estarão nas avenidas a fazer da Copa do Mundo um espelho para refletir as mazelas do país.
Fôssemos mesmo uma sociedade consciente, politizada e verdadeiramente preocupada com os rumos da nação, estaríamos todos de greve, hoje. Iríamos às ruas, não para dizermos #foraDilma, #foraPSDB, #nãovaiterCopa, etc. Mas iríamos protestar contra nós mesmos.
Em 2008, João Vitor dos Santos Rodrigues, 13, e Igor Giovani dos Santos Rodrigues, 12, dois meninos de Ribeirão Pires - SP, foram mortos e esquartejados pelo pai e pela madrasta. Boletins de ocorrência sobre maus tratos, expulsões de casa, procura de delegado, pedido de ajuda ao Conselho Tutelar não adiantaram. Os meninos vagavam como indigentes pela cidade até que, num desespero de fome e frio, voltaram pra casa e lá encontraram a morte nas mãos daqueles que deveriam cuidar de suas vidas.
Os urubus da mídia tiveram seus pontos a mais no IBOPE. A sociedade ficou chocada, a mesma que dizia que os bandidinhos deveriam ser levados pela Guarda Municipal. Depois a vida seguiu em frente, como sempre.
2014, Bernardo Boldrini, 11 anos, um menino de Três Passos – RS, foi supostamente morto pelo pai e pela madrasta. Expulsão de casa, testemunhos do vizinho e até a consciência do menino em procurar a justiça denunciando os maus tratos em casa não adiantaram. O menino vagava solitariamente pela rua e pela casa de amigos à procura de carinho que não possuía em sua morada.
Os urubus da mídia continuam a roer o corpo putrefato do menino. A sociedade hipocritamente chocada, a mesma sociedade que testemunhava o desespero do garoto, agora chora a tragédia que ela mesma criou.
Sim, quem matou os meninos João e Igor, quem matou o menino Bernardo, quem continua a matar outras crianças abandonadas em todos os aspectos somos nós, uma sociedade psicopata.
A Indiferença é o pior tipo de psicopatia, e somada com a hipocrisia da indignação seletiva é capaz de produzir o infanticídio em série, físico ou espiritual. Não adianta ir lá no velório e chorar nossas crianças mortas. Choro hipócrita, mais de remorso do que tristeza mesmo. Choro de quem diz, “Ah se eu soubesse tinha pego pra criar”...Se soubesse? Era explícito que a criança precisava de cuidado em vida.
Quantas crianças em nossas ruas, casas, escolas, hospitais clamam por meio do olhar desesperado por uma ajuda concreta? Quantos não sabemos de casos de crianças mal tratadas, espancadas, abusadas em casa pelos familiares? Quantos de nós não vemos os alunos nas escolas abandonados pela família, que se utilizam da indisciplina, do linguajar violento, da insubordinação para nos alertar que foram abandonados na sua formação intelectual e humana?
Talvez Bernardo, João e Igor foram felizardos. Morreram fisicamente antes de morrerem por dentro. Sim, talvez foi bom eles morrerem na sua inocência, antes de virarem, talvez, os marginais de rua que queremos espancados, torturados, amarrados em postes e até executados e jogados na mata, para não vermos a feiúra social que produzimos.
Somos uma sociedade que mata crianças de todas as maneiras, mas que vai à rua para apenas apontar os dedos aos políticos ou aos estádios como se estes fossem as únicas tragédias que construímos. Temos de ir à rua contra nós mesmos, uma sociedade pautada pelo individualismo, egocentrismo, que produz filhos desumanos que, se não matam os pais quando jovens, matarão seus filhos, pois não foram direcionados a ter responsabilidades e por qualquer frustração da vida (sim, temos pais que acham que ter filhos causam frustrações) acabam com a vida de quem os frustra. Somos uma sociedade que mata crianças porque não as vemos, não damos a devida atenção por estarmos preocupados com o dinheiro e o hedonismo. Coisas atrapalhadas pelas crianças, que ainda possuem uma essência fora destes dois elementos “essenciais”.
A mídia sorridentemente chora, sempre é bom para os patrocinadores que um cadáver incomum seja exibido no horário nobre. O povo no velório chora. O juiz que levou Bernardo para a morte chora. Todos choramos. Mas daqui a dois meses estaremos a celebrar os gols da seleção ou os protestos violentos contra um evento efêmero.
Enquanto isso, já temos instituídos há décadas uns movimentos convenientemente invisíveis, que vez ou outra, nos dão mostras, uma Isabela Nardoni ali, um João Vitor aqui, uma Bernardo acolá. os movimentos #nãovaiterinfância, #nãovaiterinocência, #NãoVãoTerMeninosBernardos

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