segunda-feira, 25 de julho de 2016

Análise (Review) do Episódio 01 de The Night Of. (SPOILERS)


A violência no âmago de nossa sociedade é tema frequente da arte audiovisual. O cinema frequentemente aborda o tema, mas, em muitas vezes, não se aprofunda ou por conta das amarras de conseguir uma boa bilheteria, agradando um público não exigente,  ou pelo próprio limite do tempo. Já a TV aparece como meio mais propício ao aprofundamento e à ousadia na análise dos mecanismos de barbáries que nos rondam. 

Em sua estreia, The Night Of, série da HBO, demonstra ter potencial de permanecer ao lado de grandes séries como The Wire, True Detective, Twin Peaks e afins. 

A história gira em torno do paquistanês Nasir Khan, vulgo Naz, (Riz Ahmed), que, numa noite, ao pegar o táxi de seu pai para ir a uma festa de amigos, se vê como condutor de Andrea (Sofia Black D'elia). E o que poderia ser um encontro casual, de prazeres efêmeros ou não, se transforma numa tragédia que levará Naz a uma situação catastrófica. 

O primeiro episódio já se inicia na construção da personagem de Naz, demonstrando-o como um jovem deslocado da sociedade em que vive, como vemos neste plano aberto. O marrom que dá uma sensação de segurança contrasta com o isolamento da personagem:


Seu deslocamento também se demonstra nos planos fechados do jantar em família, quando Naz informa que irá a festas de amigos negros, o que já adianta que a série abordará a questão de imigrantes e outras "minorias". Nota-se a camisa xadrez de Naz, o que se pode entender como alegoria de seu destino de presidiário:


Logo após, mais um plano que impetra a relação de Naz com as grades. Mas aqui está à espera do amigo, então, se encontra fora delas.


Ao receber a notícia de que o amigo não viria, Naz volta à casa para pegar as chaves do táxi do pai. E aqui outro plano na construção da trajetória de Naz rumo à prisão, já que enquadrado dentro das estruturas verticais e horizontais dos elementos:



O aparecimento abrupto de Andrea, ao entrar no carro, dá início a uma sequência invasiva. No entanto, está ela em sua primeira aparição coberta parcialmente de uma névoa vermelha, o que conota um destino mais horrível do que o de Naz:


A partir daqui, a narrativa se utiliza da posição dos personagens em seus plano como elementos na construção da narrativa. Andrea está na parte de trás do carro, como passageira de Naz, não fazendo parte ainda do mundo do jovem.

Mas ela inicia sua invasão a partir de gestos sutis, como o abrir a janela que liga seu espaço com o de Naz.


Nesse intermeio, o pedido para se matar a sede. Naz se demonstra um garoto certo, de boa vontade, enquanto que Andrea já aparece como uma pessoa que não se adequa a padrões éticos e morais.


O diretor Steven Zaillian brinca com os espectadores, que, em sua maioria, achariam que a água era para ela e a cerveja para Naz. Nestes planos, a metáfora da oposição do mundo dos dois aparece nas mãos do jovem.


A bebida alcoólica, símbolo da união entre opostos, dá início ao elo entre os dois. 



A partir daí, Andrea vai ocupando cada vez mais o espaço pertencente a Naz. O movimento de debruçar-se na janela demonstra que cada vez mais ela se sente à vontade, o que dá início à abertura da intimidade. 



Na ponte, o diálogo se estabelece. Relações familiares, sentir-se bem com a companhia um do outro e obrigações da existência. No plano fechado a Nazir, as luzes desfocadas dão forma a um mosaico, o que sugere que o jovem até ali possui múltiplas possibilidades à sua frente, ao mesmo tempo que sugere o bem estar ao lado de Andrea. 



No caso dela, apenas duas luzes monocromáticas atrás de si, sugerindo o não futuro, e o tédio que sente nos diversos gestos que executa até ali.


Elo estabelecido, agora Andrea segue no banco ao lado de Nazir, não é mera passageira mais a ser conduzida. Juntamente se direcionam ao destino macabro. No entanto, há ainda em Nazir a existência de um mundo vivo, simbolizado nas cores que se refletem no vidros do carro, contrastando com o olhar animado, direcionado à frente.






Já em Andrea, o mesmo padrão das cores já vistas em seu plano na cena da ponte, tendo o olhar vago para o lado, sugerindo novamente oposição a Naz e não tendo nada a ser visto em seu horizonte. 



Em muitas culturas o cervo é um animal cujo símbolo denota ao renascimento, ao nascer de um novo dia. Seus chifres são considerados réplicas da Árvore da Vida. E neste plano, já no interior da casa de Andrea, a Direção de Arte constrói uma ironia, ao colocar ao lado da cabeça do animal morto o padrão de cores antes sobrepostos em Naz. E sua imagem no espelho, ao lado esquerdo e invertida, é uma prévia da tragédia que está por vir.



Em outros planos do espaço de Andrea, uma mistura entre o vermelho que a cobre com o colorido ligado a Naz, tendo o marrom como cor que equilibra e conforta a oposição entre os dois. Destaque para o rosa, causando o efeito do romantismo e ternura, tentando se sobrepujar ao vermelho. No entanto, rima com a condição de deslocamento que Naz sente:




Tal deslocamento também é demonstrado na presença do gato, que lhe pode desencadear uma crise de asma. A ação de Andrea de em colocar o animal para fora é a aceitação de Naz em seu espaço. O marrom da parede rima com o marrom da arquibancada do plano inicial onde Naz se encontra. 



Neste plano fechado, o conjunto de cores a criar uma divisa entre o mundo dos dois. O foco em Andrea, circundada por tons marrons, vermelhos e rosas, e Naz, desfocado, sem que os últimos dois tons o cubram. 



Mas já no cenário da tragédia, eis que Naz, ainda sem saber, se mostra imerso no vermelho e rosa. A não dissociação das divisas das cores significa ainda que o rapaz possui o sentimento de ternura e ingenuidade no espaço em que se encontra.




Ao elucidar-se do ocorrido, as cores se desassociam. Note-se o sangue no abajur a apontar para fora do plano, remetendo ao corpo de Andrea, fazendo com que o espectador saiba o que ocorreu, mas tendo mais que focar na reação e expressão de Naz.


E sua reação faz as cores se associarem novamente, representado o misto de desespero, confusão com os sentimentos anteriores ao fato, mas que na cena fatal demonstram realmente o que esperava por Naz. Aqui novamente a paleta com marrom, vermelho e rosa.



Tentando fugir do local, mas pego por acaso pela polícia, que ainda não sabe do crime, Naz deixa de ser condutor para ser conduzido. Agora é sua vez de estar fechado na parte de trás da viatura. Mas ao contrário de Andrea, cujo um vidro a separava, denotando transparência e liberdade, Naz se encontra na situação de preso, atrás das grades. Destaque para as cores no canto superior direito, como se estivessem distanciando de Naz, se contrapondo às luzes de emergência no teto do carro policial, que rimam com as luzes sobre Naz no plano da Ponte. Uma cena que simboliza qual será o futuro do jovem.




Na aparição de John Stone (John Turturro), os planos alternados se sucedem, demonstrando que tanto Naz quanto Jack estão presos e submetidos a um mundo que lhes oprime. Vale destacar a fotografia agora neste ato, sendo predominante a presença de cores frias e neutras.





Antes de decidir voltar à delegacia a fim de prestar seus serviços a Naz, um sinal de que Stone entrará no mundo do jovem, as cores desfocadas e distantes no lado direito do plano. Simbolizam talvez ainda a esperança de volta do jovem ao seu mundo e a personalidade vibrante da personagem de John. Ou talvez que este também se encontrará numa situação complexa e absurda (sem volta?) ao se inserir no mundo do jovem. 



E neste plano, rimando com o plano da troca de olhares, até por conta do mistério que ronda a morte de Andrea (Naz a matou ou não?), o reforço de que John, ao se colocar como protagonista em defesa do jovem, pode entrar numa condição de prisioneiro juntamente com o jovem, já que a situação é praticamente incontornável.



E para fechar o episódio o plano na vertical a simbolizar o sentimento de confusão e conflito do pai, mais o reaparecimento do gato a atravessar a tela num movimento de liberdade e segurança, constratando com a verticalidade do pai, uma sutil ironia sobre a situação de Naz, agora prisioneiro.




quinta-feira, 7 de julho de 2016

Procurando Dory e a Moral Inclusiva Que Queríamos Ter

As animações se tornaram um gênero de cinema a ocupar constantemente espaços cada vez maiores nas salas do mundo todo. Se por um lado demonstram que ganharam um respeito à altura das grandes produções, por outro correm o risco de banalizarem personagens e temáticas por meio de abordagens supérfluas e até forçadas, ainda mais quando se tratam de continuações.


A Pixar errou feio em Carros 2, desperdiçando o potencial das duas personagens principais, McQueen e Mate, e em Procurando Dory poderia cair no mesmo risco ao não aproveitar o caráter cativante e complexo da personagem.



E quase conseguiu no desenvolvimento do primeiro ato do filme, que se acelera rapidamente sem explicar de forma convincente um motivo plausível de sua repentina memória sobre seus pais. No entanto, é no decorrer do filme que se torna coerente os motivos de sua lembrança e jornada, não apenas por meio de suas ações, mas por meio do conjunto de personagens a colaborarem com Dory, Marlin e Nemo. Personagens cujas imperfeições trouxeram-nos a condições de deslocamento e até marginalidade em seu meio social.  E é nisto que Procurando Dory se demonstra como uma animação à altura de Procurando Nemo. Enquanto que neste duas histórias eram contadas paralelamente, a jornada em busca de Nemo e o aprendizado de Marlin sobre seus traumas que limitavam seu filho, naquele temos três, a procura de Marlin e Nemo por Dory, a jornada desta em busca dos pais e o encontro e autoconhecimento dela e de outros personagens.

 

Procurando Dory é um filme sobre inclusão, um tema cada vez mais caro à nossa sociedade e tratado constantemente de forma hipócrita. Este tratamento é construído por meio da metáfora da correnteza, uma correnteza de indiferença a qual leva Dory a ser excluída de seu lar. A solidão da personagem é reforçada pela construção de planos escuros por onde a personagem ainda na infância e adolescência perambula à procura de casa, mas recebe um tratamento de desprezo de diversos peixes por causa de sua deficiência, a perda de memória recente. E mesmo depois em planos claros, após um ano do primeiro filme, por conta disso, ela ainda é excluída de participar, por exemplo, de passeios. E é num momento de exclusão que ela é levada pela correnteza e desaparece.



Discriminação, não aceitação, luta por inclusão, deslocamento são elementos da narrativas incorporadas nas personagens que habitam um centro de reabilitação e que ajudam a construir a trama. Temos Destiny, uma baleia míope,  Bailey, uma baleia branca que perde sua capacidade de ecolocalização, Hank, um polvo antissocial que não quer voltar para a vida marítima, mas viver isolado dentro de um aquário, Becky, uma mobelha autista, e Fluke e Redder, leões marinhos a hostilizarem Gerald, da mesma espécie, mas que não se enquadra no padrão daqueles dois.


E é através da relação de Dory com o polvo Hank que se centralizam os elementos conflituosos. Primeiramente para com o contraste entre azul de Dory e o vermelho de Hank, no entanto, há uma demonstração clara de que sua condição de Ictiofobia (o mesmo que misantropia para nós) não é definitiva, pois é por meio de suas mudanças de cores que se demonstra o potencial multifacetado do polvo, que pode possibilitá-lo a conviver com os diferentes. Ao mesmo tempo, Dory o interpela por sua mania de culpar os peixes deficientes pelos sofrimentos que passam. Como alguém com três corações perde a capacidade de usar pelo menos um? Como se pode querer não ter contato com ninguém no mundo?



A humanização em torno dos conflitos se dá pelo elemento do toque, personagens se abraçam, se carregam em atos de recíproca ajuda, a nos mostrar que todos dentro de qualquer contexto social possuem interdependência e qualquer desencontro ou afastamento pode pôr todo um objetivo comum em perigo.



Porém, não se demonstram pieguices convenientes. Ao mesmo tempo em que coloca a importância da conexão e interdependência, repete, de outra forma, a mensagem do primeiro filme: a necessidade de confiar na capacidade do outro de solucionar questões que só a ele pertencem (aqui faço um ressalto do curta-metragem Piper, que antecede ao filme). O lema Resgate, Reabilitação e Retorno rima com a correnteza inicial, a mesma correnteza que separa é a que é capaz de unir, uma imagem de que a vida não segue um roteiro previsível. É diante das diversidades imprevisíveis que se é possível a humanização, é por meio da marcha-ré, muitas vezes necessária, que se pode superar as agruras, como bem demonstra o último ato do filme.



Procurando Dory é um filme que demonstra a moral que queríamos ter, uma sociedade inclusiva, de compreensão, com a predisposição de ver que qualquer indivíduo, com cada incapacidade que possui, é capaz de conquistar confiança e demonstrar que está mais próximos dos seres humanos “normais”, “ sem deficiências”, do que se imagina. Mais uma vez o cinema demonstra capacidade de ser uma arte capaz de educar e projetar uma humanidade futura em que inclusão não seja uma palavra enunciada como exceção e urgência, mas uma palavra desaparecida, pois, nesse futuro, longe de existir, o desaparecimento da exclusão possibilitará o não pronunciamento da necessidade de incluir.


Há uma cena importante depois dos créditos que possibilita a feitura de um terceiro filme.


Reinaldo Melo é poeta, professor de literatura e tenta ser crítico de cinema, consciente de suas deficiências.