terça-feira, 1 de agosto de 2017

DA PEDRA À PLUMA E O INESCAPÁVEL DESTINO DA POESIA

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Em seu primeiro livro, Notas das Horas, Paulo Franco explorou a palavra pedra como metáfora de um alicerce da abstração em que o concreto dos dias está assentado. “O Trem Comum”, “Instantes de Pedra” e “Túmulos de Paz” são poemas da obra de 1995 que traduzem a relação do eu com o cotidiano, pautada entre o mundo material e o almejar uma transcendência inalcançável, o ser que “empilha a pedra/ [e] desintegra a vida”.  

Passados vinte e dois anos, em A Rua Dos Dias o poeta volta à carga mais uma vez utilizando a antiga metáfora. Mas ao invés de assentá-la, joga-a para o alto, com o claro intuito de revisitar sua poética. E engana-se quem classificar tal movimento como subterfúgio de uma poesia em crise. O que se vê é a justaposição da imagem pedra a outras contrárias, e o resultado é uma obra que, mais uma vez, revela uma lírica comprometida consigo mesma sem se utilizar dos escapismos tão comuns. É uma poesia que, ao ser metalinguagem de si mesma, consegue transpor a pedra na qual se assentou.

“O Tecido” é um claro exemplo de uma poética que não naufraga em si, pois se constitui como arte que de si quer escapar, ao afirmar que metáforas como pedra “são exemplos típicos/ desta maquiagem que o poeta/ ensandecido proclama para cutucar/ o nosso olhar...” Porém, a pedra que ensandece é a mesma pedra com o qual “tecem-se os sonhos”.

“O Tempo e A Pedra” é o poema chave para se entender a trajetória da lírica de Paulo Franco. Vemos que o peso desta sina é transformado em material do próprio fazer poético. A pedra “é bem maior que o poeta”, mas é dela que se fazem as ondas, os sonhos, as dores, a eternidade e o canto que povoa esta poesia. É este o processo que a palavra executa: transformar o peso das coisas em leveza do olhar, mesmo povoado por “mar e icebergs”.

E é o memorialismo intimista que evoca a metamorfose da pedra à pluma, do menino ao homem que o investiga, da inconformidade com o presente ao saudosismo de uma infância assinalada como utopia perdida.

Em “As Cigarras e Os Girassóis”, o canto das cigarras é uma lembrança análoga ao canto dos entes queridos perdidos, das canções de ninar acalentadoras. Aqui o poeta demonstra o domínio da construção das metáforas que traduzem o peso de sua condição: “alma de vidro” “alma sólida” e “pitorescas alegorias” são justapostas às imagens da infância, que funcionam como ópio de um ser que, desperto no labirinto da vida adulta, se remete à leveza das “paredes de fumaça”, da “taipa da alma”, dos “campos de girassóis”. Enquanto que a vida o petrifica, pois “e meio menino, fui virando outra coisa”, a poesia faz o movimento contrário: se transforma num pathos alegórico capaz de o remeter à utopia sinestésica “meio a sons, cheiros e tons/ de uma intensa e infinita saudade”.

“O Tear” segue o mesmo fundamento na construção de imagens nostálgicas que se contrapõem ao fato de “que o futuro é sempre o porvir/ já que o presente o tece lentamente”. Com isso, quer o poeta a defender que o passado é o único elemento lúdico capaz de suavizar “o olhar, timidez de um mundo estranho”?

Não! Paulo Franco se destaca na poesia brasileira justamente por não delegar a si a tarefa de um escapismo romântico ou de pirotecnias formais. Sua abordagem é material e metafísica: sabe que o tecido da vida é o presente, “o instante é único o tempo inteiro,/ universal e inevitável”, entretanto pontua que nele é que se bordam as reminiscências sobre a construção do ser simultaneamente com o que “modelam  a espera pelos amanhãs/ que outros hojes virarão”.  

A preocupação com o dia seguinte coaduna com a obsessão pelo dia seguinte. “A Página”, “Flor Fora de Hora”, “O Arquipélago do Tempo”, entre outros, configuram-se dentro da obra como formas diferenciadas sobre o mesmo tema: o tempo presente caótico faz a poesia urgir naquilo que é a sua tarefa: ser retrato do que o humano foi e é, em sincronia com o que este poderá vir a ser. E eis onde mora a genialidade de todo poeta que leva sua arte a sério: a exploração de seu interior para que a poesia seja a antena a captar os anseios universais da raça humana.

Temas como Amor, Política, Família e Cotidiano também se fazem presentes, mas são pontuais na construção que A Rua Dos Dias faz da relação do indivíduo com o tempo que lhe foi dado para apreender e vivenciar estes elementos, na complexidade e singeleza com que tecem o efêmero absoluto, tópico central desta poesia.

Esta é uma obra riquíssima. Uma perfeita tradução do peso e da leveza da vida e do inescapável destino de uma poesia que faz da pedra de nossos dias “uma linguagem que acalme o coração”.

Reinaldo Melo é Mestre em Teoria da Literatura

 e Crítica Literária pela PUC-SP