Raramente o tráfico de drogas é abordado pelo cinema de
forma que não desemboque na visão maniqueísta, criadora de uma nébula em torno da
questão. A Conexão Francesa, em seu
primeiro ato, aparenta ser uma película que se desenvolverá numa trama entre
mocinho e bandido, e se sustenta por um bom tempo assim. No entanto, em suas
idas e vindas, e também altos e baixos, a fórmula clichê da luta do bem contra
o mal se desvanece e seu desfecho faz com que venha a somar com as poucas obras
que abordaram tal problema fora do senso comum.
O filme narra a trajetória do juiz Pierre Michel (Jean
Dujardin) contra o tráfico de drogas na Marselha dos anos 70. Após ser
transferido do Juizado de Menores para o departamento de combate ao crime
organizado, Pierre logo se vê num confronto metódico com o traficante e dono da
cidade Tany Zampa ( Gilles Lellouche). Englobando os seis anos de uma luta
obsessiva, são estes dois personagens a essência de uma história cujo tema
central é o limite do poder que ambos imaginam possuir.
Numa atuação que resvala na sua carismática performance em O
Artista, Dujardin constrói uma personagem concisa e coerente com as situações
diversas e opostas pelas quais o juiz passa. Apesar de uma postura praticamente
mansa, e pouco se vê gestos bruscos à altura da batalha em que se insere, o tom
de decisão atrelado ao seu metodismo demonstra um Pierre capaz de usar todas as
ferramentas do sistema judiciário, inclusive de forma ilegal, a fim de
conseguir seus objetivos. A heroína dada a uma testemunha para que ela revele
um fornecedor, o fazer um capanga pegar numa arma de forma involuntária para o
incriminar por meio das digitais, a prática de grampos ilegais são atitudes que
revelam uma obsessão incapaz de concretizar a fronteira entre a função de um
juiz e o ato imoral e antiético. Ao
mesmo tempo, o mesmo homem que se demonstra irônico e sólido diante dos que o
ameaçam é alguém capaz de retratar a solidão, ao canto de uma mesa vazia após
um jantar de amigos, e o abandono ao chorar copiosamente.
Do outro lado, vemos o personagem de Lellouche tão sólido
quanto o protagonista. Da mesma forma metódica, se utiliza de uma violência
muito mais psicológica do que sanguínea, apelando para esta apenas quando não
há mais saídas. Zampa possui consciência
do poder que tem, mas é por ter tal consciência que seus gestos possuem
paradoxalmente elos com uma tradição civilizatória, narrada a um capanga
desobediente antes de um castigo tortuoso. Só que mesmo o poderoso é capaz de
demonstrar apreensão, tristeza e lágrimas.
É nesse paralelo que se revela a temática implícita do filme.
Enquanto que o primeiro se utiliza das brechas da ilegalidade para fazer
justiça, o outro usa da mesma inteligência para se utilizar da eficiência dos
homens da lei para livrar-se de um estorvo. É a história de dois homens que, mesmos
situados em lados opostos e com poderes correspondentes, se deparam com
obstáculos, angústias, tristezas e limitações. Em festas que promovem, seja a
comemoração da promoção, o aniversário de casamento, a aposentadoria do amigo
ou a derrota de um adversário, ambos demonstram uma áurea vigorosa, de
sentimento de invencibilidade. E em seus dramas familiares, os personagens
revelam as fragilidades inerentes à condição humana. Porém, não se cai numa humanização
piegas, ambos estão submetidos a uma mesma estrutura social. Na cena em que
eles se encontram, a acusação de causar mortes por conta do tráfico é replicada
com a justificativa de criar empregos, mas no fim do diálogo há um contra
plongée em que ambos estão sob o mesmo sol, uma metáfora de que não são tão
diferentes como pensam.
A construção dos ambientes exibe uma direção de arte
eficiente que potencializa a situação em que as personagens se encontram, seja
no detalhe de um interruptor desgastado combinando com o desespero de Pierre ao
se deparar com sua impotência ou nos vasos ornamentais a serem quebrados a
revelar a encruzilhada em que se encontra o traficante. A fotografia também é
utilizada em muitos planos com o objetivo de auxiliar a narrativa: o
departamento de polícia quase escuro, iluminado praticamente por luz natural,
constrói o sentimento de sua precariedade material e humana; a iluminação da
discoteca, propriedade de Zampa, com uma
paleta quase que invariavelmente vermelha, já nos adianta o derramamento de
sangue que está por vir. Destaque para os travelling circulares constantemente
usados a fim de captar a condição psicológica das personagens inseridas em
situações de deslocamento e confusão.
No entanto, o filme possui seus problemas
técnicos, nas cenas de ações, a montagem não funciona, o diretor Cédric Jimenez
parece inseguro em se utilizar de planos sequências, pois estes são interrompidos
por cortes abruptos, em que muitas vezes o espectador se desorienta. Em outros
momentos, executa de forma desnecessária e até redundante o mesmo estilo de
Scorsese em que a narração de um personagem a explicar o esquema do tráfico é
acompanhada de planos curtos dinamizados que não possuem em nenhum momento o
efeito estético do qual o hollywoodiano é capaz. E do segundo para o terceiro
ato, após reviravoltas magistrais, Jimenez insiste em mostrar ao espectador a
condição de altos e baixos dos personagens, mas estas variações distanciadas não
chegam a prejudicar o desenrolar do desfecho da narrativa.
Assim como Traffic,
A Conexão Francesa não é demagógico,
muito menos trata o problema com a superficialidade, por exemplo, do
documentário Quebrando o Tabu. Numa
época em que a discussão sobre a legalização ou não de drogas ilícitas ocupam
cada vez mais os espaços de debates públicos e midiáticos, o filme francês não
propõe nenhuma solução, muito menos nos faz chegar a alguma conclusão. A
qualidade do filme reside na constatação de um sistema que se caracteriza um
tanto que sobre-humano, que sobrepuja qualquer força que o toca, seja a lei ou o
poder daquele que o sustenta.