sábado, 11 de outubro de 2014

Democracias Secas

São Paulo secou-se. O que antes era um estado com viés progressista, onde a ideia de uma multiculturalidade era a amarra com o mundo contemporâneo, tornou-se um lugar em que o totalitarismo quase que monocrático nega a própria visão que o paulista tem de si.

A Semana da Arte Moderna, ocorrida em 1922, foi um grande passo dado rumo à modernização artística, econômica e  cultural do Brasil. Abriram-se as janelas para que se desenvolvesse uma visão de país fora da óticas das oligarquias rurais e da intelectualidade aristocrática, que produzia um pensamento que não coadunava com a nova sociedade que surgia.  



A Semana de 22 foi movimento chave
para SP se colocar como condutor do Brasil


Dentro do movimento, porém, havia um racha: de um lado, os escritores, como Oswald de Andrade, que defendiam uma Literatura que retratasse o Brasil literalmente, "como falamos, como somos"; do outro, artistas que defendiam uma postura nacionalista e xenofóbica cuja arte deveria retratar as glórias da pátria. 

Muitos acadêmicos criticam a superestimação da Semana de 22, afirmando que o culto que se faz dela está muito mais ligado à visão de São Paulo como protagonista do desenvolvimento nacional, o bairrismo peculiar que o  estado tem, do que à suposta importância para o desenvolvimento das artes, visto que indícios de modernidade já eram encontrados em obras anteriores. Não é à toa que a parte patriótica e xenofóbica do movimento de 22 participará do Integralismo, que possui como um dos princípios a abolição de "Estados dentro do Estado" e de "partidos políticos fracionando a Nação". 

O romance de 30 foi um foco de resistência a esse bairrismo. Escritores dos estados fora do eixo São Paulo/Rio de Janeiro construíram obras sobre um país que parte dos escritores da semana queriam esconder: o Brasil da miséria, da fome, da seca. Graciliano Ramos, injustamente rotulado de regionalista, compôs em Vidas Secas um mosaico pleno das agruras do sertão e de seus habitantes.

Mais de setenta anos depois e o estado de São Paulo, afora de não ter aprendido a lição de que há vários Brasis além da parte que ele ocupa, vive uma situação idêntica a dos personagens do escritor alagoano, condicionados pela ignorância e pela seca.

Nesta ano foi noticiada a queda do já então pífio ensino médio paulista. 40% dos alunos saem da escola com aprendizado insuficiente em Língua Portuguesa. Quase 60% não possuem conhecimento adequado em Matemática. Esses índices demonstram que São Paulo vem construindo uma população impossibilitada de ler gráficos, fazer cálculos ou interpretar índices e estatísticas e, ao mesmo tempo, incapaz de ler e entender textos. Uma fórmula magnífica para manter uma população mal informada, alienada de qualquer processo social, acrítica, uma massa de Fabianos a repetirem o mantra: "Governo é Governo". 

Concomitantemente, o estado se deparou com uma crise hídrica. A iminente falta de água, que o governo diz ser consequência pela falta de chuvas, mas, na verdade, é em decorrência da privatização da SABESP e de falta de investimentos de manutenção e de captação de água, foi assunto totalmente explorado nas eleições. Há uma crise de proporções humanitárias vindo, mas maioria do povo paulista sequer quis se aprofundar no assunto e como "Governo é Governo", então o governador estava certo em suas premissas e mereceu a reeleição.



A Privatização da água em SP é uma das causas
de sua crise hídrica


O estado que sempre se colocou como a locomotiva do país, o mais desenvolvido, industrializado e racional, sempre se comparando com o Norte/Nordeste, pontuando estas regiões como o retrato do atraso, sofre hoje das mesmas mazelas que um dia se orgulhou de não as ter: índice pífio de educação, falta de água e adoração por oligarquias solidificadas no poder.

Estima-se que a população de nordestinos de São Paulo gire em torno de 20%. Por conta da migração nordestina ocorrida a partir da industrialização na década de 50, pode-se afirmar que o povo nordestino contribuiu e muito para com o crescimento econômico do estado mais rico do país. Mas não apenas economicamente, já que as relações de povos não se fazem de forma monotemática. Houve também a contribuição cultural: artística, culinária, musical, etc. O Nordeste está em São Paulo e São Paulo está no Nordeste. Não é à toa que a capital do estado é chamada de maior cidade nordestina do Brasil. 

HItler dizia que "Temos de matar o judeu dentro de nós". Há nessa fala dois pontos curiosos: o de que o judeu tem um espectro a invadir a identidade alemã e lhe dominar e de que o nazista se sentia parte ou originado do mundo judaico. 

A ignorância é a base para o nazifascismo se instalar. E em decorrência à baixa formação educacional da população do Estado de São Paulo, atrelada à ideologia fascista do integralismo, assistimos na última semana a uma mostra de afirmações antidemocráticas (e por que não nazifascistas?) advindas de parte povo paulista. 




Afirmações nazifascistas de paulistas na Net


Propostas como construir um muro separando Norte/Nordeste do resto do Brasil (não é mera coincidência com os muros que separavam os guetos judeus da população alemã), causar um holocausto ou jogar uma bomba atômica foram algumas das diversas pérolas de ódio destinadas a uma população que votou em maioria no partido oposto ao do governo do Estado de São Paulo.



Proposta idêntica ao guetos para judeus
na Alemanha Nazista


Celso Furtado sempre denunciou as diferenças entre o Sudeste e o Nordeste, afirmando que a industrialização daquela região criaria o atraso desta, e criou, no governo Juscelino Kubitschek a Sudene, órgão que ajudou na modernização nordestina. Mas tal politica foi abortada no regime militar, mantendo-se o Nordeste nos índices de subdesenvolvimento. 

Ao contrário de São Paulo, que agora possui mazelas de regiões subdesenvolvidas, parte do Nordeste vem acumulando benefícios por conta de uma política desenvolvimentista.  Entre 2002 e 2010, o PIB do Nordeste passou de R$ 190 bilhões para R$ 500 bilhões. O número de universitários praticamente dobrou nos últimos dez anos, da base de 4 milhões para 7,5 milhões. Em 2000, eram 4,3 milhões de trabalhadores nordestinos com carteira assinada. Hoje, ultrapassa a ordem de 13 milhões. Fora o fato da ONU estabelecer que o Brasil saiu da lista dos países com problemas com a fome, por conta da assistência que se dá aos habitantes miseráveis da região.



Celso Furtado:o grande idealizador do
desenvolvimento no Nordeste

Como então julgar como burro e analfabeto um povo que predominantemente vota a favor de uma política que vem favorecendo a sua região? Não seria burrice e analfabetismo funcional e político votar a favor de um governo que vem patrocinando agruras como: o desmonte da educação básica, fundamental, média e superior do estado; a falta de investimento em captação de água, o que pode causar danos à saúde, ao comércio e à produção industrial; a matança de centenas de pessoas na baixada santista desde 2006, onde grupos de extermínio ligados a forças repressoras do estado declararam guerra às populações das periferias desta região?

Essa onda de ódio talvez seja um hitlerismo às avessas, enquanto que o austríaco defenderia matar o nordestino que está dentro dos paulistas, o povo de São Paulo quer matar o mito paulista que hoje o próprio paulista vê nos nordestinos, já que estes colhem números proporcionais aos da época do desenvolvimento paulista. Só essa inversão psicológica é base para explicar tamanho recalque.

E como cereja no bolo de tanto ódio e preconceito, até um ex-presidente da república faz coro com a turba nazifascista ao afirmar que o voto no governo atual é por falta de informação dos habitantes dos grotões do país. É de salientar o fato repugnante de um ex-presidente da república desconhecer  o próprio país que chegou a governar, chamando todo uma região de grotão e desmerecendo o processo democrático que um dia o fez chegar na cadeira de chefe de estado. Mas tal opinião é compreensível, já que o mesmo ex-presidente tem seu reduto, justamente, em São Paulo.


Fernando Henrique Cardoso: Ex-presidente e
acadêmico que desconhece o país


A História mostra que os grandes impérios caíram por não se darem conta da realidade em que viviam. Roma mesmo adotou para si a imagem que não tinha diante dos próprios povos  que dominava, subestimando estes, que um dia viriam eles mesmos a derrubá-la. O Terceiro Reich, de Hitler, idem. Superestimou sua capacidade bélica. Não é de surpreender que quando Hitler se viu derrotado, uma das primeiras medidas foi destruir o suprimento de água do povo alemão, já que este não era superior a ponto de vencer uma guerra.

Talvez parte do povo paulista sinta hoje um narcisismo ás avessas. Não podendo ou não querendo ver a si mesmo, sentindo conscientemente ou inconscientemente que seu apogeu como protagonismo de desenvolvimento sucumbiu a uma nova lógica em que o capital não possui mais pátria ou regiões definidas, sente-se mais confortável a apontar para o suposto atraso dos outros quando na verdade é o seu próprio atraso que deveria estar em debate. Mas o que esperar de um povo que, em maioria, nunca quis ver o que há lá fora, para além das janelas do integralismo, não se preocupa com sua educação, não se preocupa com sua harmonia social, não se preocupa nem ao menos com um elemento vital para a vida: a água? 

Não é à toa que em São Paulo se vive uma seca de democracia. 

sábado, 27 de setembro de 2014

Sobre a Poesia de Paulo Franco

Escrevi, há tempos, este texto sobre a obra O Outro Lado do Outro. Para acessá-la, clique aqui!


AS VOZES E A VOZ DE PAULO FRANCO

 “Idéias verdes incolores dormem
 furiosamente”.
Noam Chomsky

Em Do Outro Lado do Outro, sua quarta obra poética, Paulo Franco envereda-se por um caminho cujo horizonte avista-se através da busca pela evolução de sua performance.

Notas das Horas, de 1995, apresenta o aflorar de um estilo inconfundível, reproduzido também em Pétalas de Insônia, de 1999. Naqueles, o eu lírico divide-se em duas vozes: a primeira evoca um mundo injusto, selvagem e inviável, a realidade se sobrepõe à construção de seus  versos, entretanto afirma-se o caráter efêmero daquilo que se condena. O real é “ um cimento magro de um silêncio mágico”; a segunda voz possui um caráter transcendental, o eterno desajuste à condição existencial, tempo e vida se digladiam numa arena rítmica e semântica, onde os versos decepam qualquer instinto de passividade diante da existência. 

Paisagens do Olhar, de 2001, aparece com uma proposta diferenciada, as duas vozes se fundem, cessa-se, aparentemente, a batalha, mas a linguagem inusitada nos faz ter a impressão de que a qualquer momento aqueles versos irão se romper por conta da tensão de suas imagens e divagações. Mais do que nunca, a poesia de Franco nos impede de exercitar, a todo o instante, um aliviado respiro metafísico.

Nas estrofes deste Do Outro Lado do Outro ecoam os temas tão abordados por Franco nas demais obras. Ainda há “uma ideologia involuntária”, há o inconformismo com o envelhecer inerente ao tempo, há o conflito entre as relações com o que é material, mas, novamente, inova-se o carpintejar de seus versos.

Poemas como Cristaleira, O Gari, O Mar e Estação são grandes amostras desta inovação, da “busca incansável” pela forma perfeita. Esta nova forma cultiva momentos que representam uma pausa para a candura. Deixa-se de lado aquele aspecto incisivo do impacto, eficiente em revelar uma condição tão caótica em que se encontram os indivíduos. Agora, os versos são organizados como resposta a este caos e, finalmente, o lirismo de Franco é uma harmonia entre imagem, ritmo, distopia e utopia. Há até o espaço  para o riso, como se vê nas últimas estrofes de Fumaça. E qual leitor atento ao mistério do fazer a poesia não verterá uma dose de emoção qualquer após a leitura d’O Mito? 

No entanto, Franco não busca apenas o novo, nos faz também dialogar com o “velho”. É o caso do poema A Mariposa, que se apresenta como um outro ponto de vista d’O Colecionador de Coisas, do livro de 95. O eu-lírico deixa de se colocar como personagem central, o que reproduz uma leveza a qual o poema anterior não possuía. Outra explicitação desse diálogo é O Crack, de 01, reesculpido. Ele nos revela a real intenção do poeta: a síntese, a condensação, o abandono da estrofe didática, não há mais a concessão ao leitor. Este que se deixe levar ao infinito através da justaposição das imagens aqui construídas. Uma forma de combater uma sociedade onde a alienação e o automatismo são a lei vigente. Não basta o leitor estar apenas ao lado dos indivíduos, é necessário conhecer o outro lado destes, e a poesia de Franco atenta-se para isso, buscando o outro lado de sua poética antiga, pois não é suficiente apenas o seu conhecimento, o verso decorado, alienante, é preciso continuar “restaurando um outro verso/ para a mesma poesia”.

Desenha-se, então, o horizonte da poesia de Franco, que se encaminha para a pura metáfora, porém sem ser a metáfora simplesmente pura, não são traços de “metáforas involuntárias”, como ele quer que acreditemos. Todos os seus elementos estão voltados para a reorganização de tudo aquilo que se construiu, “os restos dos sentidos que ensinaram”, para nos ensinar a rever nossos olhares, aprimorá-los para que se construam outros sentidos. Entretanto, para ensinar é preciso também aprender e o aprendizado de Franco foi a necessidade de reconstrução da sua poética. Nunca foi tão necessário dizer o mesmo, mas repetir-se é ficar vagando pelos cantos escuros da História. A solução encontrada pelo poeta foi fazer de sua poesia o seu próprio movimento, sua própria ciência e este se mover, esta investigação com o intuito de encontrar a forma perfeita inefável faz do seu lirismo algo original e profundo que contrasta com uma vasta produção nacional comprometida apenas com pirotecnias e aliterações de assonâncias fugazes, incapazes de elevar o ser humano a um patamar de reflexão e insubordinação a este status quo.

A poesia deste livro liberta libertando-se das teias as quais estava presa. Desta liberdade, nasce, portanto, uma nova voz a acrescentar, às demais vozes, como diz o poeta n’O Gari, um canto que restaure o encanto de um mundo tão desencantado.



sábado, 20 de setembro de 2014

A Semiótica da Imobilidade e a Democracia Palhaça

Lúcia Santaella, em seu livro A Assinatura das Coisas, afirma que "o mundo não está dividido entre coisas, de um lado, e signos de um outro. Isto quer dizer: não há nada que não possa ser um signo, ou melhor, tudo é signo, ou melhor ainda, todas as coisas têm a sua própria assinatura." 

Coerente com sua própria teoria, a professora, uma das maiores especialistas em semiótica do Brasil, posta em seu Facebook uma análise sobre as ciclofaixas na cidade de SP:





Coadunando a mensagem com a teoria, pode-se afirmar que vemos um signo cujo significado revela como são discutidas as questões coletivas em nossa sociedade: por meio do ponto de vista individualista, que produz um unilateralismo em que se fecha o olhar para a multiplicidade mais óbvia do mundo que o rodeia.

A mensagem poderia passar por imperceptível, como qualquer outro comentário de alguém que vê o mundo com o fígado, mas, por ser de uma professora PHD que já lecionou em Berlim, é de se espantar com o fato de que intelectualidade e sensatez não são irmãs siameses.



Primeiramente a falta de compostura para com o prefeito de uma cidade, chamando-o de pintor de ruas e dizendo que as ciclofaixas foram encomendadas do "diabo em pessoa". Interessante, como a professora estabelece a política de criação de ciclofaixas como uma política demoníaca.



Um dado importante: em 2012, morreram na cidade de SP 52 ciclistas, um por semana. Fora os casos de atropelamento. Em Março de 2013, a mídia deu destaque para o caso do ciclista David Santos Souza, que teve seu braço arrancado. O motorista não o socorreu e jogou o braço num córrego. 

O ciclista David Santos Souza

Certamente, a professora se utilizou apenas do seu olhar unilateral de motorista de uma sociedade em que as grandes cidades são estruturadas para comportar o símbolo mor do individualismo contemporâneo, o automóvel, oprimindo e excluindo qualquer cidadão que se locomova por outros meios: o pedestre, o ciclista, os passageiros de ônibus.

A professora recomenda ao prefeito o estudo ("só um pouquinho") de semiótica para o conhecimento de efeitos das cores em nosso sistema nervoso central, dizendo que a cor vermelha da ciclo faixa se caracteriza como poluição visual. E destila o fel da incompreensão afirmando que é uma propaganda política de um partido político cuja cor característica é vermelha. E para completar tal azedume, a cereja do bolo é asseverar que São Paulo não é uma cidade como a capital holandesa Amsterdam para que haja ciclofaixas a torto e a direito.

Santaella deveria deixar de analisar o fato através de sua semiótica estática e estudar um pouquinho mais para constatar que a cor vermelha foi estabelecida pelas normas nacionais de  trânsito, no intuito de chamar a atenção do motorista mesmo, não se compondo como poluição visual. De onde se conclui também que não se caracteriza como propaganda política partidária.

Ao mesmo tempo, o sentimento de vira-lata também surpreende, vindo de uma estudiosa como Santaella. A elite paulistana sempre teve a Europa como modelo em educação, política, arte, etc. Afirmar que São Paulo não é Amsterdam é dizer que as políticas de lá nunca dariam certo aqui porque não temos a "evolução" do europeu.

Uma ciclovia em Amsterdam 

A mensagem de Lúcia Santaella poderia passar como algo inocente, como apenas uma expressão natural de uma cultura mal humorada do paulistano que nunca está contente com nada do que é feito em sua cidade, mesmo que seja algo positivo. Mas revela-se como algo gravíssimo: ao se discutir política se enfoca mais no caráter privado do que no público.

Dane-se o fato de morrer um ciclista atropelado por semana, que se exploda as mais de 4500 pessoas que morrem anualmente por causa da poluição de veículos em São Paulo, que se seja indiferente ao efeito estufa e com a desertificação da região metropolitana paulista. 

Este desprezo pelo bem comum é consequência da visão torpe e individualista de parte do eleitorado que discute a política partidária com as enzimas do fígado. 

Não é à toa que uma recente pesquisa demonstrou que os candidatos favoritos para ocuparem uma cadeira na Câmara dos Deputados sejam Tiririca, Marcos Feliciano e Paulo Maluf.

O eleitor de Tiririca mal sabe de sua trajetória nestes quatro anos em que exerceu o cargo de deputado, mas se seduz com a estratégia de riso que o candidato adota em sua campanha, ou seja vota-se no candidato por que ele causa o riso zombando da política, a única ciência capaz de engendrar caminhos para o bem estar coletivo. Troca-se o voto pelo riso individual, anulação da política ou de qualquer reflexão ou conhecimento sobre ela.

A Brasília de Tiririca 

No caso de Marcos Feliciano, desemboca-se na mesma gravidade, sem a "inocência" humorística de Tiririca. 

Feliciano ficou famoso por conta de sua postura frente à presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, onde obstruiu projetos que favoreciam minorias, ao mesmo tempo dando declarações racistas, homofóbicas e machistas, contrastando com o cargo que ocupava. 

O eleitor de Feliciano combina sua visão fundamentalista com a visão sobre a política: para ele não há diferença entre o seu moralismo e o Estado. Um deputado tem de aliciar, subornar, chantagear o Estado para que este se torne imóvel em sua obrigação: formular políticas para uma sociedade heterogênea e multicultural. Com a eleição de Feliciano e, consequentemente, com o aumento da bancada evangélica, o que se estabelece é a crise do Estado, prestes a se transformar num templo em que uma parcela religiosa da sociedade impede que políticas públicas e laicas, que favorecem todo o coletivo, sejam barradas e até revogadas.

Feliciano e o Fundamentalismo na Política

O eleitor de Paulo Maluf é o retrato perfeito que vemos por meio das afirmações da professora Santaella: o bordão "foi Maluf que fez" coaduna com a visão de progresso que o paulista possui. Concreto, asfalto e viadutos foram a herança que Maluf deixou através de suas gestões pautadas pela visão futurista utópica de uma São Paulo sempre em movimento. A cidade feita para o carro e para o cidadão de bem. Se há engarrafamento, Maluf projeta um viaduto ali, um minhocão aqui para resolver o fluxo. Há problemas de ordem social, salientando as contradições do projeto futurista com os anseios dos mais pobres? Não há o porquê de se preocupar, Maluf botará a Rota na rua. 

Além do fascismo claro, há ainda a indiferença para com o fato de Maluf ser réu em vários processos de corrupção e não poder sair do país por estar sendo caçado pela Interpol. A indignação seletiva é um dos traços de um povo que elege aqueles que fazem faltar água nas torneiras, mas que se ferramenta do ódio contra políticos preocupados com a diminuição da taxa de poluição e da imobilidade urbana.

Paulo Maluf, símbolo da indignação 
seletiva do paulistano

Tal natureza do eleitor e das figuras centrais destas eleições é consequência de uma visão publicitária ideológica, que quer atingir o indivíduo eleitor como mero consumidor a escolher um candidato conforme seus desejos íntimos e sua visão unilateral do mundo. Mas isso fica para outro texto.

O que se pode concluir é que candidatos e eleitores são signos que fazem da política algo totalmente surreal. Há uma imobilidade do pensamento crítico e reflexivo que poderia contribuir com a construção de uma sociedade harmônica, mas o que se vê é uma indiferença para com os problemas sociais e com as decisões que possam solucionar alguns desses problemas. E quando não há a indiferença, depara-se, constantemente, com o fel destilado contra qualquer mecanismo que queira discutir ou resolver tais questões.

A professora Santaella, dentro de seu véu de cidadã crítica, não percebe que seu discurso favorece a armação de um circo no palco das discussões sobre políticas públicas e faz com que a democracia seja vista através da miopia que favorece os donos do picadeiros, fazendo de nós, PHD's ou não, os verdadeiros palhaços dessa ilusão de (semi)ótica chamada democracia. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A Desmassificação Massificada de Patrícia Moreira

Uma das características do ser humano é o medo de ser tocado pelo desconhecido. 

Consequentemente, há o desejo de isolamento social, em que estabelece estratégias comportamentais para não haver qualquer relação com o outro, ou físico, se fechando dentro de um espaço onde o contato com o mundo não ocorra, sentindo-se amplamente protegido. A aversão a qualquer contato é inerente à natureza humana. Essa essência contrasta com a necessidade de socialização de nossa espécie. 

Freud dizia que o indivíduo na sociedade moderna estaria condenado à infelicidade. O ser humano não é essencialmente gentil, é agressivo. E a culpa de manter interiorizada tal agressividade o condiciona a plena insatisfação. Para a civilização moderna, esse impulso agressivo é o que ameaça a sua existência; a condição civilizada da sociedade sempre está à beira do precipício da barbárie. Para que não ocorra a queda o impulso individual muitas vezes deve ser sacrificado pelo impulso social.

O indivíduo na sociedade esta condenado à infelicidade

Tal medo e conflito são amenizados no processo de massificação do indivíduo. A massa é uma integração de indivíduos de diferentes estratificações sociais, profissionais, sexuais, etc, em torno de algo comum que os iguale por completo. Por exemplo, uma torcida de um time de futebol. Na massa, além do indivíduo perder o medo do contato com o outro e com o mundo externo, há o sentimento de proteção e integração. Tudo é o oposto da individualização. O medo se torna coragem, o que era reprimido passa a ser liberado.

Patrícia Moreira era apenas uma indivídua comum de nossa sociedade. Jovem, círculo social natural para a sua idade, funcionária na área de odontologia de um departamento militar, foi a um estádio para apreciar seu time do coração. E diante da derrota, fez coro à turba furiosa inconformada com a apresentação do seu time, destilando seu impulso individual agressivo a uma das figuras do time adversário, o goleiro Aranha, chamando-o de macaco.

Até aí, nada “incomum” do que já foi visto em diversos estádios do mundo, mas a moça não contava que a proteção que a massa poderia lhe dar, para que seus impulsos reprimidos se liberassem, fosse tão frágil diante de outra ferramenta de massificação: a TV.

Flagrada pelas câmeras, Patrícia Moreira massificadamente se desmassificou, ou seja, a partir dali a mídia iniciou uma construção falsa de sua individualidade alçando-a como a mulher mais nefasta do país.

Patrícia Moreira, desmassficada pela mídia massificadora

Na era do espetáculo, a mídia trata todos os fenômenos pelo viés sensacionalista. Ao mesmo tempo, faz o papel de Estado com a cumplicidade de seu público: ela testemunha o crime, abre o inquérito, estabelece o processo, opera o julgamento e condena ao seu bel prazer. É a substituição bárbara do estado democrático de direito.

Meses atrás, Raquel Sherazade defendeu o linchamento de um menor de idade suspeito de roubo, incitando a população, cansada de impunidade e da ausência do Estado (que ironicamente é implacável contra pobres, especialmente os negros), a tomar as rédeas do que se entende por justiça. Depois de tal declaração houve uma epidemia de linchamento no país.

E o linchamento não é nada mais nada menos do que um fenômeno de massificação. A turba reunida diante de um suposto criminoso, inocente ou não, libera seus impulsos agressivos e massacra o indivíduo sem chance de recorrer ao direito de defesa que a civilização teoricamente lhe garante.

Rachel Sherazade, apologia ao linchamento 

Patrícia Moreira, que em seu contexto de indivídua massificada, fazia coro com a massa que massacrava verbalmente o goleiro adversário, ironicamente foi desmassificada, mas não para ser tratada como um indivíduo único e especial, mas como um ser merecedor de um massacre, de um linchamento midiático e social, a ponto de perder o trabalho, o direito de poder sair à rua e ao mesmo tempo assistir à derrocada de sua família, que não possuía relação alguma com o crime que ela cometeu dentro do estádio.

Todo um roteiro ideológico programado pela mídia hipócrita, que coloca negros como empregados em suas novelas, que estampa o negro nas suas manchetes policiais, que trata o negro apenas como pagodeiro, mulata carnavalesca, jogador de futebol ou protagonista de comercial de café, e que sempre se coloca contra as cotas raciais em universidades e concursos, desprezando que somos uma sociedade de maioria negra, mas que esta é marginalizada dos direitos constitucionais mais básicos.

Tudo se discutiu nessa história menos o racismo e suas fontes. Quando se dá mais ênfase à racista do que o processo que formula e mantém o racismo em nossa sociedade, a mídia mata dois coelhos com uma cajadada só: promove o justiçamento, se colocando como protagonista dos valores que a turba furiosa necessita e mantém intacta a estrutura ideológica do racismo que ela mesma reproduz diariamente, se isentando do crime racial que ajuda a propagar.

A mídia que condena Patrícia Moreira 
é protagonista do Racismo em sua programação

Patricia Moreira, assim como os outros torcedores, merece ser processada e julgada, mas dentro do que lhe garante o estado democrático de direito.

Quando tratamos um criminoso sem a humanização que lhe cobramos, em nada diferimos dele. Dentro de um processo civilizatório, a pena para um criminoso é muito mais do que lhe negar o convívio em sociedade ou lhe imputar ações (como trabalhos comunitários) contra a sua vontade. Deve se focar também a sua reeducação para se conscientizar de que fez algo errado e não reincidir em tal prática.

Assim como se destrói um indivíduo por meio de qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo, como estão fazendo com Patrícia Moreira. De nada vale defender a civilização sendo tão bárbaros quanto os que a ameaçam. 

sábado, 30 de agosto de 2014

Não Vão Ter Meninos Bernardos

(Texto escrito em 18/04/2014, e publicado pelo Luís Nassif. Mediante a divulgação na mídia dos vídeos sobre o caso, resolvi republicá-lo, em homenagem ao Bernardo e às muitas crianças que passam horrores em seu lares. Não podemos esquecer, nem devemos cultivar a inércia)
***


Daqui a dois meses teremos uma batalha sem precedentes em nosso país. De um lado, jogadores e torcedores engajados na conquista do sexto troféu de campeões mundiais, do outro, cidadãos críticos engajados a boicotar um dos maiores eventos esportivos do mundo, demonstrando a indignação e o compromisso com os rumos de uma sociedade que despeja dinheiro no subterfúgio lúdico.
Dizer-se indignado e consciente da situação do país virou modinha desde as manifestações de Junho do ano passado. O #nãovaitercopa é fruto dessa moda. Seria positivo esse movimento caso não refletisse a hipocrisia dos politizados. Bilhões já foram gastos com campeonatos de futebol estaduais, nacionais e continentais. Outros bilhões com carnavais e outros eventos esportivos como a Fórmula 1. Para não dizer de outros bilhões para a cultura em forma de alienação. Mas tudo é circo e os palhaços de forma alegórica estarão nas avenidas a fazer da Copa do Mundo um espelho para refletir as mazelas do país.
Fôssemos mesmo uma sociedade consciente, politizada e verdadeiramente preocupada com os rumos da nação, estaríamos todos de greve, hoje. Iríamos às ruas, não para dizermos #foraDilma, #foraPSDB, #nãovaiterCopa, etc. Mas iríamos protestar contra nós mesmos.
Em 2008, João Vitor dos Santos Rodrigues, 13, e Igor Giovani dos Santos Rodrigues, 12, dois meninos de Ribeirão Pires - SP, foram mortos e esquartejados pelo pai e pela madrasta. Boletins de ocorrência sobre maus tratos, expulsões de casa, procura de delegado, pedido de ajuda ao Conselho Tutelar não adiantaram. Os meninos vagavam como indigentes pela cidade até que, num desespero de fome e frio, voltaram pra casa e lá encontraram a morte nas mãos daqueles que deveriam cuidar de suas vidas.
Os urubus da mídia tiveram seus pontos a mais no IBOPE. A sociedade ficou chocada, a mesma que dizia que os bandidinhos deveriam ser levados pela Guarda Municipal. Depois a vida seguiu em frente, como sempre.
2014, Bernardo Boldrini, 11 anos, um menino de Três Passos – RS, foi supostamente morto pelo pai e pela madrasta. Expulsão de casa, testemunhos do vizinho e até a consciência do menino em procurar a justiça denunciando os maus tratos em casa não adiantaram. O menino vagava solitariamente pela rua e pela casa de amigos à procura de carinho que não possuía em sua morada.
Os urubus da mídia continuam a roer o corpo putrefato do menino. A sociedade hipocritamente chocada, a mesma sociedade que testemunhava o desespero do garoto, agora chora a tragédia que ela mesma criou.
Sim, quem matou os meninos João e Igor, quem matou o menino Bernardo, quem continua a matar outras crianças abandonadas em todos os aspectos somos nós, uma sociedade psicopata.
A Indiferença é o pior tipo de psicopatia, e somada com a hipocrisia da indignação seletiva é capaz de produzir o infanticídio em série, físico ou espiritual. Não adianta ir lá no velório e chorar nossas crianças mortas. Choro hipócrita, mais de remorso do que tristeza mesmo. Choro de quem diz, “Ah se eu soubesse tinha pego pra criar”...Se soubesse? Era explícito que a criança precisava de cuidado em vida.
Quantas crianças em nossas ruas, casas, escolas, hospitais clamam por meio do olhar desesperado por uma ajuda concreta? Quantos não sabemos de casos de crianças mal tratadas, espancadas, abusadas em casa pelos familiares? Quantos de nós não vemos os alunos nas escolas abandonados pela família, que se utilizam da indisciplina, do linguajar violento, da insubordinação para nos alertar que foram abandonados na sua formação intelectual e humana?
Talvez Bernardo, João e Igor foram felizardos. Morreram fisicamente antes de morrerem por dentro. Sim, talvez foi bom eles morrerem na sua inocência, antes de virarem, talvez, os marginais de rua que queremos espancados, torturados, amarrados em postes e até executados e jogados na mata, para não vermos a feiúra social que produzimos.
Somos uma sociedade que mata crianças de todas as maneiras, mas que vai à rua para apenas apontar os dedos aos políticos ou aos estádios como se estes fossem as únicas tragédias que construímos. Temos de ir à rua contra nós mesmos, uma sociedade pautada pelo individualismo, egocentrismo, que produz filhos desumanos que, se não matam os pais quando jovens, matarão seus filhos, pois não foram direcionados a ter responsabilidades e por qualquer frustração da vida (sim, temos pais que acham que ter filhos causam frustrações) acabam com a vida de quem os frustra. Somos uma sociedade que mata crianças porque não as vemos, não damos a devida atenção por estarmos preocupados com o dinheiro e o hedonismo. Coisas atrapalhadas pelas crianças, que ainda possuem uma essência fora destes dois elementos “essenciais”.
A mídia sorridentemente chora, sempre é bom para os patrocinadores que um cadáver incomum seja exibido no horário nobre. O povo no velório chora. O juiz que levou Bernardo para a morte chora. Todos choramos. Mas daqui a dois meses estaremos a celebrar os gols da seleção ou os protestos violentos contra um evento efêmero.
Enquanto isso, já temos instituídos há décadas uns movimentos convenientemente invisíveis, que vez ou outra, nos dão mostras, uma Isabela Nardoni ali, um João Vitor aqui, uma Bernardo acolá. os movimentos #nãovaiterinfância, #nãovaiterinocência, #NãoVãoTerMeninosBernardos

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Predominância do Mal e a Literatura como Antídoto

A era medieval apresentava uma visão de mundo platônica e imutável, as fronteiras do pensamento e da moral eram claras e as vítimas do poder, quando ultrapassavam tais fronteiras, sabiam o porquê de serem massacradas, mesmo tendo consciência de sua inocência.

Já na era moderna todos estamos à mercê das engrenagens esquartejadoras do poder. Em quaisquer aspectos somos o alvo de massacres diários, independentemente do que façamos, independentemente da inércia total em que estamos.

O Processo (1925), de Franz Kafka é uma parábola sobre tal condição do homem moderno diante deste aparato estatal e ideológico da modernidade. Nela, Josef K., ao despertar, já se encontra numa situação enigmática: dois homens estão em sua casa para o prenderem, no entanto problema é que ele não sabe o porquê de estar sendo preso. Abre-se o inquérito, forma-se o processo e Josef K. durante o romance inteiro tenta arranjar formas para se defender, mas sem saber quem o acusa e do que ele é acusado.

Kafka nasceu em Praga, capital da República Tcheca, em 1883 e faleceu em 1924. Além de contemporâneo da primeira guerra mundial, presenciou o crescimento do anti-semitismo na Europa e deste construiu imagens metafóricas sobre a alienação e a impotência do indivíduo moderno, que desembocaram nas fábricas de extermínio humano dos campos de concentração. Além d'O Processo, A Metamorfose (1915) e O Castelo (1926) compõem o quadro do absurdo da vida na modernidade. 

Kafka anteviu os horrores do século XX

Curiosamente, Kafka se sentia alienado de tudo. Não se via como judeu, era Tcheco, mas escrevia em alemão, ao mesmo tempo em que não se sentia alemão. Em suas obras, há um ataque pesado às figuras masculinas. Em vida, teve dificuldades em se relacionar com o universo feminino, mas suas personagens mulheres ora aparecem sem a tradicional sensibilidade feminina, são reprodutoras do autoritarismo nonsense, ora se prefiguram como porto seguro das personagens principais. Kafka testemunhou e relatou os valores conflituosos de um mundo decadente.

Vivemos numa era em que somos deslocados de tudo, não há lugar seguro para se acomodar e desfrutar a existência. Mesmo que se tenha uma vida ética, não importa. Nosso lugar e identidade serão alvos constantes de ataques que não sabemos de onde vêm e porque  vêm. Sejamos evangélicos, católicos, umbandistas, judeus, muçulmanos,  espíritas, cabeludos, calvos, carecas, loiros, morenos, brancos, negros, indígenas, asiáticos, árabes, magros, gordos, musculosos, crianças, jovens, idosos, sem estudo, intelectuais, alunos, professores, homens, mulheres, etc. sempre seremos alvos de discriminações voluntárias ou involuntárias que causam o efeito de carregarmos a culpa pela natureza que nos compõe. 

Estamos dentro de um processo e, sem defesa, condenados por um mundo que nos ensina a aplicar o ódio a todos e, curiosamente, a nós mesmos, pois, além de apontar para o diferente, sempre estamos a nos cobrar de alguma acusação que a ideologia nos faz: somos feios, burros, não gostamos do nosso corpo e nada do que temos é o suficiente. Ou seja, estamos dentro de um campo de concentração de ideologias e a qualquer momento podemos nos direcionar resignadamente para as câmaras de gás por acharmos que não nos merecemos. Assim como fez Josef K., que aceita a culpa e a punição, sem ter consciência de quem ele é e do que fez.

Vivemos alienados de nós mesmos e dos outros

É um mundo em que estamos condenados à própria desumanização. Alienados de nós mesmos, perambulamos pela existência à procura de um locus amenus, mas já se instaurou dentro de nós a iminência da destruição e da extinção da espécie (são mais de 75 mil ogivas nucleares em todo o mundo, capaz de destruir as condições de vida na Terra centenas de vezes).

Rubem Fonseca disse que para cada ogiva nuclear seria necessária “uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo da Bomba explodir”.

 A leitura da Literatura preserva o que se denomina como alteridade. É a nossa consciência interagindo com a consciência do outro e, assim, estabelece a compreensão que só podemos ser o que somos diante dos que nos são diferentes. Ou seja, precisamos do outro para ser o que somos e nisto está a salvação da humanização que ainda existe parcamente em nosso mundo.  Ao nos tornarmos sensíveis ao fato de que os outros são diversos e que suas características, opiniões, trejeitos e costumes se distanciam de nós, rompemos as cercas de arame farpado de nossos próprios campos de concentração e nos encontramos distantes da ideia de processar, condenar e eliminar o que é diferente. E simultaneamente nos aceitamos também, dentro das "limitações" que carregávamos até então como fardos.

O leitor pode então perguntar: Se a Literatura é tão importante assim para a salvação do mundo, por que os livros de Kafka não impediram que as barbáries do século XX ocorressem?

A Literatura tem função humanizadora

Exatamente porque a Literatura a partir da belle époque se tornou marginalizada na sociedade. A Literatura sempre foi uma voz contra a realidade e suas opressões, metafísicas ou físicas, e numa sociedade “de paz e bem estar”, de sensação de “liberdade”, a leitura da verdadeira Literatura foi diminuindo mesmo no seio de grupos que cultuavam tal hábito. Os homens não impediram o que ocorreu não porque a Literatura não tem importância nos rumos da humanidade. O fato da Literatura ser um instrumento de pouco uso na sociedade é que fez com que os homens não impedissem tais atrocidades, justamente porque a Literatura é o receptáculo da compreensão do que é o homem e o que são as suas máquinas opressoras.

Primo Levi, que enfrentou os horrores de Auschwitz, disse que depois do que ocorreu seria impossível escrever poesia. Eu afirmo o contrário: é pelo fato do que ocorreu e do que ocorre no mundo que a Arte, a Poesia, a Literatura são mais do que necessárias para que o horror não se estabeleça e predomine. Cada vez mais precisamos de Kafkas, Drummonds, Pessoas, Saramagos, Machados, etc, em nosso cotidiano. Mais do que um mero exercício de entretenimento, a Literatura tem como conseqüência a ampliação de nossa visão de mundo, a nossa direção a uma ética de resgate da liberdade, nossa e do outro. Portanto, à construção de uma sociedade em que não sejamos nem algozes, nem vítimas, nem culpados. E que processemos apenas as belezas do ser e do existir.


Indicação de Leitura: Por que Literatura, de Antoine Compagnon.




domingo, 17 de agosto de 2014

Sobre Suicídios, Velórios e Selfies

Os gregos tinham Homero como o educador da nação. Os heróis do poeta eram exemplos para a juventude e formavam a cartilha básica para a formação do homem grego. Se este quisesse atingir o sentido da existência, deveria ter como parâmetro o caráter e as ações de um Aquiles,  de um Heitor, de um Ulisses. Todos tiveram seus momentos de elevação, o momento ápice da existência, como se a soma dos segundos que viveram resultasse naquele instante decisivo em que a honra, a glória e a eternidade foram postas em jogo.

Mas da Antiguidade Clássica apenas escutamos alguns ecos e o ideal do homem grego soa, hoje, como algo ingênuo. Honra, glória e eternidade são meros elementos efêmeros numa sociedade em que tudo que é sólido nem se esfarela mais; se liquidifica e evapora rapidamente, não sobrando nada do concreto, a não ser para as mentes nostálgicas que ainda utilizam a memória como bússola nas trilhas caóticas de nossos tempos.

Cena clássica da Odisseia, de Homero

Robin Williams era um ator cuja imagem da persistência otimista diante da vida, da superação diante de qualquer fatalidade, da supremacia da felicidade possível sobre a tristeza imponderável, se solidificou no imaginário popular. Mas Hollywood é uma fábrica de fantasias e o ator de um papel só nos demonstrou que nem sempre a vida imita a arte, que seus filmes não serviram de lição nem para ele. Lamentamos a morte do ator, mas devemos refletir se a auto ajuda, seja na literatura ou no cinema, é elemento viável para o combate à depressão de nossos dias. O ator não foi covarde, nem foi uma falácia, foi um doente que sucumbiu diante da gravidade do que tinha. Numa sociedade em que a felicidade é obrigatória, queremos justificar de forma irracional sua morte apelando ao idealismo juvenil de grande parte de seus filmes.

Seus personagens são eternos: a cena do professor subindo na mesa, em Sociedade dos Poetas Mortos, e a dança na estação, em O Pescador de Ilusões, são parte da honra, glória e eternidade das quais o ator participou, mas aqui, fora da arte, efemeridade é a lei.

Robin Williams e a cena imortal

Tanto é assim que o assunto Robin Williams não havia sequer temperado e a queda de um avião resultando na morte de um candidato à presidência do Brasil foi o novo alimento para ser degustado. O espetáculo foi uma necrofagia ruminante: o político, que se posicionava muito abaixo dos números dos outros dois favoritos à eleição, de uma hora para outra, se tornou no homem que seria certamente eleito, no político que salvaria o país. Honra, glória e eternidade alcançadas mais por uma sociedade obscura que anseia por qualquer facho de luz, pela necessidade de tornar tudo espetacular, do que por ações próprias.

E a tal sociedade se deleita com um roteiro hollywwodiano fantasioso que ela mesma produziu. A mídia criando o herói, um novo Tancredo Neves; as pessoas nas redes sociais formulando teorias da conspiração de dar inveja à criatividade de roteiristas consagrados; os políticos fazendo do caixão da vítima um palanque eleitoral (desconfio que o defunto aprovaria  tais atitudes).

Morto embalado, multidão à espreita e muitos celulares à mão. Imagens, imagens, imagens incessantes. Todo um cenário, um espetáculo a ser concretizado em pixels para compartilhar nas redes sociais. Reflexão sobre a morte? Debates sobre os rumos do país? Respeito à dor da família? Necas, este momento é o avesso da narrativa épica. Enquanto nesta há uma sucessão de reviravoltas, peripécias e atitudes para que o personagem encontre o momento ápice em que tudo o que é justo e glorioso está em jogo, a ficção real, tendo um caixão adornado como cenário, é o instante sagrado para o indivíduo criar sua própria história épica, cujo objetivo é um retrato que simbolize o “Eu estava lá!”

O Selfie como espetáculo de si mesmo

O importante é fazer um selfie e se tornar um espetáculo de si mesmo, atitude lógica de um meio social em que o narcisismo é utilizado como cortina transparente, no objetivo de esconder o vazio moral e existencial predominantes. Tudo em busca da honra, glória e eternidade fajutas. Até que o próximo espetáculo se instaure e continuemos a ter assuntos e motivos para nos deleitarmos com nós mesmos.

Não defenderei volta do ideal do homem grego, mas por mais que tal ideal soe como sofista, é bem menos patético que a realidade absoluta que temos hoje.

PS. A própria família do político falecido participou, em partes, de tal narcisismo, com interesses a averiguar.

PS2: Desconfio também que este texto seja uma atitude narcisista.


Indicação de Leitura: Paideia, A Formação do Homem Grego, de Werner Jaeger e A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Amor e Pós-modernidade: O Outro Como Fetiche

Na sociedade consumista, tudo tem o seu valor de usufruto e de troca e os produtos alçam-se ao patamar acima do ser humano. É o chamado fetichismo da mercadoria. As coisas não são um meio de nos proporcionar qualidade de vida e evolução pessoal, elas são um fim em si mesmas. Compra-se um carro não por necessidade de locomoção, mas por ser um objeto carregado de um simbolismo poderoso de realização existencial.

Compra-se um tênis não para melhor poder caminhar, mas pela sua etiqueta ser reflexo de status social. Compra-se uma bolsa de grife para que os outros reflitam nosso sucesso ao vêem que podemos adquiri-la, ela pouco serve para guardar as coisas. Neste processo, o humano perde sua característica singular e, quando não abaixo, está no mesmo nível das coisas comercializadas.


O Ser marginaliza-se e o Ter é o que nos define como indivíduos.Mas, além disso, o capitalismo precisa da rotatividade dos objetos. Sai um carro novo, um tênis novo, uma bolsa nova e corremos atrás destes novos objetos para atualizarmos o nosso status de vencedores por meio deles. Os objetos precisam se tornar efêmeros para que o consumismo prevaleça e que o indivíduo busque cada vez mais se preencher com esses objetos de validade pré-determinada.

As relações humanas não estão imunes a este processo de fetichismo e o amor, sentimento tão debatido, visto como um meio de ascensão do ser, entra na roda viva da efemeridade do consumo. O consumista está sempre insatisfeito, pois não se realiza enquanto ser, e as atitudes dessa insatisfação serão reproduzidas em suas relações pessoais e amoras. O outro não é visto como singular na relação, mas como um espelho que reflete as projeções do consumista. Finda-se a ética das relações e a pessoa é uma mercadoria cuja validade existe enquanto proporciona ao outro sentimentos de realização mercadológica. 

Não se ama o que o outro é, mas o status social e material que ele representa. Ele se torna então mero objeto de consumo, que tem em si um desgaste como um produto qualquer pronto a ser descartado e jogado no saco de lixo. A humanidade do outro é esvaziada e quando se quer compreendida se iguala a um computador cujas especificações técnicas estão ultrapassadas.

Vivemos numa modernidade de risco, tudo é assombroso, desde sair de casa à rua até as discussões entre Obama e Putin sobre quem melhor mente sobre a queda do avião. Por este sentimento de risco e medo nossas relações estão pautadas e buscamos uma zona de conforto a ponto de nos protegermos de qualquer ameaça exterior. 

Nas histórias românticas, o conceito de “viveram felizes para sempre” foi uma estratégia burguesa para a instituição do casamento como célula mantenedora das relações monetárias. Assim, uma massa de consumidores acredita que encontrar outra pessoa é fato para que todas as diversidades do mundo se esgotem, é o outro que dará um fim às nossas lutas interiores, é o outro que nos trará a felicidade plena e fará com que a vida se harmonize. Nada mais falacioso.

É preciso colocar o amor como um sentimento, antes de tudo, ético. É na humanização do outro que construiremos a nossa própria humanização. E no mergulhar da diferença do outro em relação a nós que abrangeremos nossa consciência e autoconhecimento. O outro é o contraste de nós que nos encaminha para o entendimento da própria existência. O ideal é conhecer e compreender o que o outro tem de diferente de nós, qualidades, “defeitos”, inseguranças, medos, etc. Com isso, não vemos o outro como um objeto de consumo sobre o qual temos o poder de uso. 

Quando o outro revela algo fora das nossas projeções e não o tratamos como fetiche mercadológico, estamos diante de uma experiência humanizadora, estamos potencializados a encarar o amor real e não o romântico egoísta piegas. O amor puro e humanizado fica posto na igualdade de dedicação e de recebimento emocional. Assim, ao estarmos abertos para com o outro seja para o entendimento de autonomia seja na compreensão de suas fragilidades, estamos fazendo do amor mais do que uma mercadoria de status, mas uma experiência única capaz de entendermos nossa localização no mundo e no mundo do outro, assim como também somos capazes de amar o outro como um ser em si.


PS: Indicação de Leitura: O Amor Líquido, de Zygmunt Bauman.