sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A Predominância do Mal e a Literatura como Antídoto

A era medieval apresentava uma visão de mundo platônica e imutável, as fronteiras do pensamento e da moral eram claras e as vítimas do poder, quando ultrapassavam tais fronteiras, sabiam o porquê de serem massacradas, mesmo tendo consciência de sua inocência.

Já na era moderna todos estamos à mercê das engrenagens esquartejadoras do poder. Em quaisquer aspectos somos o alvo de massacres diários, independentemente do que façamos, independentemente da inércia total em que estamos.

O Processo (1925), de Franz Kafka é uma parábola sobre tal condição do homem moderno diante deste aparato estatal e ideológico da modernidade. Nela, Josef K., ao despertar, já se encontra numa situação enigmática: dois homens estão em sua casa para o prenderem, no entanto problema é que ele não sabe o porquê de estar sendo preso. Abre-se o inquérito, forma-se o processo e Josef K. durante o romance inteiro tenta arranjar formas para se defender, mas sem saber quem o acusa e do que ele é acusado.

Kafka nasceu em Praga, capital da República Tcheca, em 1883 e faleceu em 1924. Além de contemporâneo da primeira guerra mundial, presenciou o crescimento do anti-semitismo na Europa e deste construiu imagens metafóricas sobre a alienação e a impotência do indivíduo moderno, que desembocaram nas fábricas de extermínio humano dos campos de concentração. Além d'O Processo, A Metamorfose (1915) e O Castelo (1926) compõem o quadro do absurdo da vida na modernidade. 

Kafka anteviu os horrores do século XX

Curiosamente, Kafka se sentia alienado de tudo. Não se via como judeu, era Tcheco, mas escrevia em alemão, ao mesmo tempo em que não se sentia alemão. Em suas obras, há um ataque pesado às figuras masculinas. Em vida, teve dificuldades em se relacionar com o universo feminino, mas suas personagens mulheres ora aparecem sem a tradicional sensibilidade feminina, são reprodutoras do autoritarismo nonsense, ora se prefiguram como porto seguro das personagens principais. Kafka testemunhou e relatou os valores conflituosos de um mundo decadente.

Vivemos numa era em que somos deslocados de tudo, não há lugar seguro para se acomodar e desfrutar a existência. Mesmo que se tenha uma vida ética, não importa. Nosso lugar e identidade serão alvos constantes de ataques que não sabemos de onde vêm e porque  vêm. Sejamos evangélicos, católicos, umbandistas, judeus, muçulmanos,  espíritas, cabeludos, calvos, carecas, loiros, morenos, brancos, negros, indígenas, asiáticos, árabes, magros, gordos, musculosos, crianças, jovens, idosos, sem estudo, intelectuais, alunos, professores, homens, mulheres, etc. sempre seremos alvos de discriminações voluntárias ou involuntárias que causam o efeito de carregarmos a culpa pela natureza que nos compõe. 

Estamos dentro de um processo e, sem defesa, condenados por um mundo que nos ensina a aplicar o ódio a todos e, curiosamente, a nós mesmos, pois, além de apontar para o diferente, sempre estamos a nos cobrar de alguma acusação que a ideologia nos faz: somos feios, burros, não gostamos do nosso corpo e nada do que temos é o suficiente. Ou seja, estamos dentro de um campo de concentração de ideologias e a qualquer momento podemos nos direcionar resignadamente para as câmaras de gás por acharmos que não nos merecemos. Assim como fez Josef K., que aceita a culpa e a punição, sem ter consciência de quem ele é e do que fez.

Vivemos alienados de nós mesmos e dos outros

É um mundo em que estamos condenados à própria desumanização. Alienados de nós mesmos, perambulamos pela existência à procura de um locus amenus, mas já se instaurou dentro de nós a iminência da destruição e da extinção da espécie (são mais de 75 mil ogivas nucleares em todo o mundo, capaz de destruir as condições de vida na Terra centenas de vezes).

Rubem Fonseca disse que para cada ogiva nuclear seria necessária “uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo da Bomba explodir”.

 A leitura da Literatura preserva o que se denomina como alteridade. É a nossa consciência interagindo com a consciência do outro e, assim, estabelece a compreensão que só podemos ser o que somos diante dos que nos são diferentes. Ou seja, precisamos do outro para ser o que somos e nisto está a salvação da humanização que ainda existe parcamente em nosso mundo.  Ao nos tornarmos sensíveis ao fato de que os outros são diversos e que suas características, opiniões, trejeitos e costumes se distanciam de nós, rompemos as cercas de arame farpado de nossos próprios campos de concentração e nos encontramos distantes da ideia de processar, condenar e eliminar o que é diferente. E simultaneamente nos aceitamos também, dentro das "limitações" que carregávamos até então como fardos.

O leitor pode então perguntar: Se a Literatura é tão importante assim para a salvação do mundo, por que os livros de Kafka não impediram que as barbáries do século XX ocorressem?

A Literatura tem função humanizadora

Exatamente porque a Literatura a partir da belle époque se tornou marginalizada na sociedade. A Literatura sempre foi uma voz contra a realidade e suas opressões, metafísicas ou físicas, e numa sociedade “de paz e bem estar”, de sensação de “liberdade”, a leitura da verdadeira Literatura foi diminuindo mesmo no seio de grupos que cultuavam tal hábito. Os homens não impediram o que ocorreu não porque a Literatura não tem importância nos rumos da humanidade. O fato da Literatura ser um instrumento de pouco uso na sociedade é que fez com que os homens não impedissem tais atrocidades, justamente porque a Literatura é o receptáculo da compreensão do que é o homem e o que são as suas máquinas opressoras.

Primo Levi, que enfrentou os horrores de Auschwitz, disse que depois do que ocorreu seria impossível escrever poesia. Eu afirmo o contrário: é pelo fato do que ocorreu e do que ocorre no mundo que a Arte, a Poesia, a Literatura são mais do que necessárias para que o horror não se estabeleça e predomine. Cada vez mais precisamos de Kafkas, Drummonds, Pessoas, Saramagos, Machados, etc, em nosso cotidiano. Mais do que um mero exercício de entretenimento, a Literatura tem como conseqüência a ampliação de nossa visão de mundo, a nossa direção a uma ética de resgate da liberdade, nossa e do outro. Portanto, à construção de uma sociedade em que não sejamos nem algozes, nem vítimas, nem culpados. E que processemos apenas as belezas do ser e do existir.


Indicação de Leitura: Por que Literatura, de Antoine Compagnon.




4 comentários:

  1. Bom saber que além da literatura temos pessoas com sensibilidade e capacidade de reflexão. Obrigada, Reinaldo.

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  2. Também precisamos de mais Reinaldos, bela reflexão!

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  3. Estou relendo os seus textos, professor. Hoje, compreendo-os muito melhor. Como diz o mestre Mario Quintana, "Não penses compreender a vida dos autores. Nenhum disto é capaz. Mas à medida que vivendo fores, melhor os compreenderás." Saudades das suas aulas e orgulho de ter sido seu aluno!

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