A era medieval apresentava
uma visão de mundo platônica e imutável, as fronteiras do pensamento e da moral
eram claras e as vítimas do poder, quando ultrapassavam tais fronteiras, sabiam
o porquê de serem massacradas, mesmo tendo consciência de sua inocência.
Já na era moderna todos estamos à mercê das
engrenagens esquartejadoras do poder. Em quaisquer aspectos somos o alvo de
massacres diários, independentemente do que façamos, independentemente da
inércia total em que estamos.
O Processo (1925), de Franz Kafka é uma parábola
sobre tal condição do homem moderno diante deste aparato estatal e ideológico da
modernidade. Nela, Josef K., ao despertar, já se encontra numa situação
enigmática: dois homens estão em sua casa para o prenderem, no entanto problema é que
ele não sabe o porquê de estar sendo preso. Abre-se o inquérito, forma-se o
processo e Josef K. durante o romance inteiro tenta arranjar formas para se
defender, mas sem saber quem o acusa e do que ele é acusado.
Kafka nasceu em Praga, capital da República Tcheca,
em 1883 e faleceu em 1924. Além de contemporâneo da primeira guerra mundial,
presenciou o crescimento do anti-semitismo na Europa e deste construiu imagens
metafóricas sobre a alienação e a impotência do indivíduo moderno, que desembocaram nas
fábricas de extermínio humano dos campos de concentração. Além d'O Processo, A Metamorfose (1915) e O Castelo (1926) compõem o quadro do absurdo da vida na modernidade.
Kafka anteviu os horrores do século XX
Curiosamente, Kafka se sentia alienado de tudo. Não se
via como judeu, era Tcheco, mas escrevia em alemão, ao mesmo tempo em que não se
sentia alemão. Em suas obras, há um ataque pesado às figuras masculinas. Em
vida, teve dificuldades em se relacionar com o universo feminino, mas suas personagens mulheres ora aparecem sem a
tradicional sensibilidade feminina, são reprodutoras do autoritarismo nonsense,
ora se prefiguram como porto seguro das personagens principais. Kafka testemunhou
e relatou os valores conflituosos de um mundo decadente.
Vivemos numa era em que somos deslocados de tudo,
não há lugar seguro para se acomodar e desfrutar a existência. Mesmo que se tenha
uma vida ética, não importa. Nosso lugar e identidade serão alvos constantes
de ataques que não sabemos de onde vêm e porque vêm. Sejamos evangélicos,
católicos, umbandistas, judeus, muçulmanos,
espíritas, cabeludos, calvos, carecas, loiros, morenos, brancos, negros,
indígenas, asiáticos, árabes, magros, gordos, musculosos, crianças, jovens,
idosos, sem estudo, intelectuais, alunos, professores, homens, mulheres, etc.
sempre seremos alvos de discriminações voluntárias ou involuntárias que causam
o efeito de carregarmos a culpa pela natureza que nos compõe.
Estamos dentro de
um processo e, sem defesa, condenados
por um mundo que nos ensina a aplicar o ódio a todos e, curiosamente, a nós
mesmos, pois, além de apontar para o diferente, sempre estamos a nos cobrar de
alguma acusação que a ideologia nos faz: somos feios, burros, não gostamos do
nosso corpo e nada do que temos é o suficiente. Ou seja, estamos dentro de um
campo de concentração de ideologias e a qualquer momento podemos nos direcionar
resignadamente para as câmaras de gás por acharmos que não nos merecemos. Assim
como fez Josef K., que aceita a culpa e a punição, sem ter consciência de quem ele é e do que fez.
Vivemos alienados de nós mesmos e dos outros
É um mundo em que estamos condenados à própria
desumanização. Alienados de nós mesmos, perambulamos pela existência à procura
de um locus amenus, mas já se
instaurou dentro de nós a iminência da destruição e da extinção da espécie (são
mais de 75 mil ogivas nucleares em todo o mundo, capaz de destruir as condições
de vida na Terra centenas de vezes).
Rubem Fonseca disse que para cada ogiva nuclear seria
necessária “uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes
mesmo da Bomba explodir”.
A leitura da
Literatura preserva o que se denomina como alteridade. É a nossa consciência
interagindo com a consciência do outro e, assim, estabelece a compreensão que
só podemos ser o que somos diante dos que nos são diferentes. Ou seja, precisamos
do outro para ser o que somos e nisto está a salvação da humanização que ainda
existe parcamente em nosso mundo. Ao nos
tornarmos sensíveis ao fato de que os outros são diversos e que suas
características, opiniões, trejeitos e costumes se distanciam de nós, rompemos
as cercas de arame farpado de nossos próprios campos de concentração e nos
encontramos distantes da ideia de processar, condenar e eliminar o que é
diferente. E simultaneamente nos aceitamos também, dentro das "limitações" que
carregávamos até então como fardos.
O leitor pode então perguntar: Se a Literatura é tão
importante assim para a salvação do mundo, por que os livros de Kafka não
impediram que as barbáries do século XX ocorressem?
A Literatura tem função humanizadora
Exatamente porque a Literatura a partir da belle époque
se tornou marginalizada na sociedade. A Literatura sempre foi uma voz contra a
realidade e suas opressões, metafísicas ou físicas, e numa sociedade “de paz e
bem estar”, de sensação de “liberdade”, a leitura da verdadeira Literatura foi
diminuindo mesmo no seio de grupos que cultuavam tal hábito. Os homens não impediram o que ocorreu não porque
a Literatura não tem importância nos rumos da humanidade. O fato da Literatura ser um instrumento de pouco uso na sociedade é que fez com que os homens não impedissem tais atrocidades, justamente porque a
Literatura é o receptáculo da compreensão do que é o homem e o que são as suas máquinas
opressoras.
Primo Levi, que enfrentou os horrores de Auschwitz,
disse que depois do que ocorreu seria impossível escrever poesia. Eu afirmo o
contrário: é pelo fato do que ocorreu e do que ocorre no mundo que a Arte, a
Poesia, a Literatura são mais do que necessárias para que o horror não se estabeleça e predomine. Cada vez mais precisamos de
Kafkas, Drummonds, Pessoas, Saramagos, Machados, etc, em nosso cotidiano. Mais
do que um mero exercício de entretenimento, a Literatura tem como conseqüência a ampliação de nossa visão de mundo, a nossa direção a uma ética de resgate da liberdade,
nossa e do outro. Portanto, à construção de uma sociedade em que não
sejamos nem algozes, nem vítimas, nem culpados. E que
processemos apenas as belezas do ser e do existir.
Indicação de Leitura: Por que Literatura, de Antoine Compagnon.
Indicação de Leitura: Por que Literatura, de Antoine Compagnon.
Bom saber que além da literatura temos pessoas com sensibilidade e capacidade de reflexão. Obrigada, Reinaldo.
ResponderExcluirTambém precisamos de mais Reinaldos, bela reflexão!
ResponderExcluirFantástico
ResponderExcluirEstou relendo os seus textos, professor. Hoje, compreendo-os muito melhor. Como diz o mestre Mario Quintana, "Não penses compreender a vida dos autores. Nenhum disto é capaz. Mas à medida que vivendo fores, melhor os compreenderás." Saudades das suas aulas e orgulho de ter sido seu aluno!
ResponderExcluir