Em seu
primeiro livro, Notas das Horas,
Paulo Franco explorou a palavra pedra como metáfora de um alicerce da abstração
em que o concreto dos dias está assentado. “O Trem Comum”, “Instantes de Pedra”
e “Túmulos de Paz” são poemas da obra de 1995 que traduzem a relação do eu com
o cotidiano, pautada entre o mundo material e o almejar uma transcendência inalcançável,
o ser que “empilha a pedra/ [e] desintegra a vida”.
Passados
vinte e dois anos, em A Rua Dos Dias
o poeta volta à carga mais uma vez utilizando a antiga metáfora. Mas ao invés
de assentá-la, joga-a para o alto, com o claro intuito de revisitar sua poética.
E engana-se quem classificar tal movimento como subterfúgio de uma poesia em
crise. O que se vê é a justaposição da imagem pedra a outras contrárias, e o
resultado é uma obra que, mais uma vez, revela uma lírica comprometida consigo
mesma sem se utilizar dos escapismos tão comuns. É uma poesia que, ao ser
metalinguagem de si mesma, consegue transpor a pedra na qual se assentou.
“O
Tecido” é um claro exemplo de uma poética que não naufraga em si, pois se
constitui como arte que de si quer escapar, ao afirmar que metáforas como pedra
“são exemplos típicos/ desta maquiagem que o poeta/ ensandecido proclama para
cutucar/ o nosso olhar...” Porém, a pedra que ensandece é a mesma pedra com o
qual “tecem-se os sonhos”.
“O
Tempo e A Pedra” é o poema chave para se entender a trajetória da lírica de
Paulo Franco. Vemos que o peso desta sina é transformado em material do próprio
fazer poético. A pedra “é bem maior que o poeta”, mas é dela que se fazem as ondas, os sonhos, as dores, a eternidade e o canto que
povoa esta poesia. É este o processo que a palavra executa: transformar o peso
das coisas em leveza do olhar, mesmo povoado por “mar e icebergs”.
E é o
memorialismo intimista que evoca a metamorfose da pedra à pluma, do menino ao
homem que o investiga, da inconformidade com o presente ao saudosismo de uma
infância assinalada como utopia perdida.
Em “As
Cigarras e Os Girassóis”, o canto das cigarras é uma lembrança análoga ao canto
dos entes queridos perdidos, das canções de ninar acalentadoras. Aqui o poeta
demonstra o domínio da construção das metáforas que traduzem o peso de sua
condição: “alma de vidro” “alma sólida” e “pitorescas alegorias” são
justapostas às imagens da infância, que funcionam como ópio de um ser que,
desperto no labirinto da vida adulta, se remete à leveza das “paredes de
fumaça”, da “taipa da alma”, dos “campos de girassóis”. Enquanto que a vida o
petrifica, pois “e meio menino, fui virando outra coisa”, a poesia faz o
movimento contrário: se transforma num pathos alegórico capaz de o remeter à
utopia sinestésica “meio a sons, cheiros e tons/ de uma intensa e infinita
saudade”.
“O
Tear” segue o mesmo fundamento na construção de imagens nostálgicas que se
contrapõem ao fato de “que o futuro é sempre o porvir/ já que o presente o tece
lentamente”. Com isso, quer o poeta a defender que o passado é o único elemento
lúdico capaz de suavizar “o olhar, timidez de um mundo estranho”?
Não!
Paulo Franco se destaca na poesia brasileira justamente por não delegar a si a
tarefa de um escapismo romântico ou de pirotecnias formais. Sua abordagem é
material e metafísica: sabe que o tecido da vida é o presente, “o instante é
único o tempo inteiro,/ universal e inevitável”, entretanto pontua que nele é
que se bordam as reminiscências sobre a construção do ser simultaneamente com o
que “modelam a espera pelos amanhãs/ que
outros hojes virarão”.
A
preocupação com o dia seguinte coaduna com a obsessão pelo dia seguinte. “A
Página”, “Flor Fora de Hora”, “O Arquipélago do Tempo”, entre outros,
configuram-se dentro da obra como formas diferenciadas sobre o mesmo tema: o
tempo presente caótico faz a poesia urgir naquilo que é a sua tarefa: ser
retrato do que o humano foi e é, em sincronia com o que este poderá vir a ser.
E eis onde mora a genialidade de todo poeta que leva sua arte a sério: a
exploração de seu interior para que a poesia seja a antena a captar os anseios
universais da raça humana.
Temas
como Amor, Política, Família e Cotidiano também se fazem presentes, mas são
pontuais na construção que A Rua Dos Dias
faz da relação do indivíduo com o tempo que lhe foi dado para apreender e
vivenciar estes elementos, na complexidade e singeleza com que tecem o efêmero
absoluto, tópico central desta poesia.
Esta é
uma obra riquíssima. Uma perfeita tradução do peso e da leveza da vida e do inescapável
destino de uma poesia que faz da pedra de nossos dias “uma linguagem que acalme
o coração”.
Reinaldo
Melo é Mestre em Teoria da Literatura
e Crítica Literária pela PUC-SP
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